domingo, 31 de maio de 2009

Último instante

Não existe som mais terrível do que o de um crânio sendo partido. Tenho isso pra mim desde os 7 anos de idade, quando meu irmão mais novo caiu da laje. Um estampido seco ecoou por toda a casa, talvez por toda a rua. Hoje, se é que posso em minha situação atual referir-me a essas medidas temporais, percebo que o barulho é ainda pior quando trata-se de sua própria cabeça. O estalar do osso quebrando soa num volume tão alto que chega, por vezes, a cobrir meus pensamentos.

Lembro-me de sentir a bala, quente, derretendo meus cabelos, rasgando minha pele. Lembro-me de sentir cada pequena fissura abrir-se no osso. Agora sinto o chumbo fervente beijando meu cérebro enquanto o ruído ainda retumba em meus tímpanos.

Na minha visão, a cozinha de casa. Uma panela no fogo imóvel, um pequeno inseto pousado na pia, as teias de aranha nos cantos do armário, um clarão vindo de meu lado esquerdo (origem da bala) e minha mulher com uma expressão de terror ainda moldando-se no rosto. O que aconteceu, como aconteceu, ainda não consegui entender. Lembro-me de ouvir um barulho na porta, depois foi só o cabelo queimando, a pele rasgando e o som, o maldito som do meu crânio quebrando.

Estava as vésperas de completar 48 anos. Não sei se é possível comparar, mas acho que já estou aqui, parado, congelado nesse momento, fitando minha esposa e toda cozinha há muito mais tempo que minha própria idade, mesmo sabendo que nem um segundo se passou.

Nesse tempo, conheci cada detalhe, cada poro, pêlo, cada marca de expressão e cada fio de cabelo dela. Descobri que não há nada mais letal para o amor de um homem do que ser condenado a observar o mesmo rosto por toda eternidade. Se ainda me fosse possível um último movimento, não me voltaria contra o meu assassino e sim contra ela e a socaria, com todas as forças, tentaria a todo custo desfigurá-la, bateria sua face contra a quina da pia, atearia-lhe fogo, arrancaria-lhe um olho a dentadas, faria o que fosse preciso para destruir essa cara que estou condenado a encarar eternamente.

Por vezes tenho a sensação de que alguma coisa mudou, que a chama moveu-se ou que a gota de suor em sua têmpora esquerda está um milímetro abaixo do que estava antes e me apego na esperança de que o tempo ainda passa e que isso pode acabar.

Não, morrer é bem pior do que imaginava... é só a ausência do próximo instante.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Pais e filhos

Hoje matei um homem. Não que eu me orgulhe disso. Tão pouco me arrependo. Só do motivo, não do fato. Ele mereceu. Ela talvez merecesse muito mais. Pouco importa, hoje eu matei um cara.

Ainda tenho as mãos sujas de sangue, nesse banheiro imundo, d'um boteco não menos imundo. Mal consigo soltá-lo. Estou ensopado de sangue.

Confesso ter sentido um certo prazer enquanto a faca furava-lhe a pele e o sangue jorrava, feito um coxão d'agua furado. Filhodaputa, me sujou inteiro. Um certo prazer, não maior que o prazer de fumar um cigarro.

Um cigarro! Essa é a merda de não fumar, no dia em que um se faz necessário, não tem. Talvez no bolso dele: não lembrava que ele fumava essa bosta de cigarro barato, tem gosto de merda. Olhando bem agora, ele ainda me parece um pouco vivo. Acho de bom tom oferecer-lhe uns tragos, espero não ter lhe furado os pulmões. Sim, o cretino ainda esta vivo. Uma pequena volta na faca cravada no peito e mais sangue. Isso está uma sujeirada danada. Chega de me abraçar cretino, vai pro chão.

O motivo, preciso encontrar um. Ele mereceu, sei disso. Tenho um motivo, não teria feito sem um. Preciso me lembrar. Só lembro do beijo que ele me deu no momento em que lhe cravei a faca. Eu teria feito isso, para pesar mais a consciência de meu assassino. Bobagem. O pobre diabo só caiu sobre meus ombros. Está morto. Definitivamente.

Hoje matei um homem. Eliminar outro igual... acho até que me orgulho. Um pouco. Conhecia-o há tempos. 35, eu acho, ou mais, nunca fui muito bom com tempo e datas. Também não me importa. Hoje eu o matei. O motivo...

Aquela puta. Não profissional, só por prazer. Puta! Deve ter trepado com ele. Talvez tenha sido isso. Ele mereceu. Esse me parece um bom motivo. Talvez eu deva matá-la também, aqui, do mesmo jeito e deixar os corpos empilhados como se fizessem aquilo que já faziam há muito tempo em vida. Aquela puta! Está lá fora. Preciso chama-la aqui.

Sujo de sangue como estou, ela não virá. Merda. Da onde conheço esse bosta? Vou me lembrar... aos poucos a memória aparece, é sempre assim. Acontece por algum motivo e depois me lembro. Estou velho, eu acho. Mal lembro minha idade, não ao certo. Talvez 60. Cheio de rugas.

Nunca achei que matar fosse tão simples. Nunca fiz isso antes, eu acho. Não me lembro. Talvez tenha feito. É tão insignificante que talvez tenha me esquecido. Ainda não lembro quem é o sujeito, mas os olhos, enquanto morria, pareciam com os da vaca. 35 anos. Casamentos são assim, felicidade felicidade felicidade e um filhodaputa comendo sua mulher.

Vou matá-la! Ela merece. Tenho o motivo. Antes do fato. Melhor assim. Só que cheio de sangue a policia me pega fácil. Preciso sumir com as provas, limpar a blusa, esconder o corpo.

Não fiz nada, não há porque se limpar. Sumir com as provas é assumir o crime. Não... prefiro assim. Consciência tranqüila. Ser preso por um crime que não cometi. Não foi um crime.

Era meu filho. Eu acho. Era também o dela.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Amada pichorra

Ontem, ao abrir minha porta, encontrei uma velha pichorra lendo meus livros e conversando com a tv. Puta merda! Isso não se faz... peguei o toco, presente de um bom amigo, e fiz o que tinha de ser feito.

Pichorra filha da puta!

Tartaruga

Todo dia... Chega em casa, lava os pés (banhos só aos finais de semana) entra no quarto, tranca a janela, a porta, fecha a cortina senta e espera. Às vinte e três o sono chega, sempre nesse mesmo horário. Então levanta, percorre as paredes do quarto, tampa a fresta em baixo da porta com uma toalha velha, confere mais uma vez: trancada. O sono passa e volta à meia-noite, então repete o ritual e dorme, quando o sono não cansa e vai embora, para voltar uma hora depois, junto com o mesmo ritual.

Meia-hora, acorda, acende a luz, rodeia o quarto, verifica a porta e dorme de luz acesa, antes das coisas que podem aparecer. Meia-hora... tudo se repete.

Acorda, pontualmente as seis e trinta. Faz nova inspeção, mais minuciosa que qualquer outra, chama duas ou três vezes... ninguém atende. O quarto, como quase sempre, vazio. Há vinte e dois anos ninguém, além dele mesmo, entrava naquele quarto bolorento.

Passado a primeira hora da manhã, abre a porta com toda a cautela, e espreita, por dez ou vinte minutos, esperando algum tipo de surpresa desagradável. Nada. Desce as escadas, repara, sempre, nas teias de aranha no canto do teto. Sabe exatamente qual estava lá ontem e qual tinha sido construída durante essa noite.

Perdia-se então, no tempo e no espaço, perdia o chão, as paredes, as teias e toda a paranóia. Olhava, só fazia isso, por horas e horas. Nesse intervalo, comia, trabalhava, conversava com as pessoas ou não fazia nada disso, só olhava fixamente para ela e nela se perdia, como se buscasse algum sentido nisso tudo, como se esperasse alguma palavra, explicação. Esperava apenas uma expressão, uma expressão qualquer. Ela, como ele, apenas parada, não esperava nada.

Separava as melhores folhas do maço de alface e a alimentava, folha por folha, como um pai que alimenta o filho doente, concentrava-se nisso e não pensava no alface, que aparecia, sem qualquer explicação, todo dia pela manhã na geladeira. No fundo, não importava, era coisa pequena para se preocupar. Sabia que ainda estava naquele quarto, vinte e dois anos antes, olhando para a tartaruga que surgiu ao lado dos seus chinelos sem qualquer explicação.

Com a porta fechada, olhava tentando entender. E não entendia.