terça-feira, 2 de novembro de 2010

psicopatologia

um cão, quando enlouquece, veste uma confortável roupa casual, pega o ônibus às seis da manhã e vai trabalhar. outro dia, conversando com um deles na rua, descobri que o termo cachorro não é adequado. cachorro é poddle - me disse - eu sou um cão. explicou que ficava ainda mais interessante porque também era usado para fazer referência ao diabo. o cão. concordo, penso que é sempre bom estar associado ao diabo, associar-se a deus dá muito trabalho e tem poucos resultados práticos.

aconteceu em minha última internação psiquiátrica, disseram que eu havia enlouquecido, mas tudo o que eu fazia era rosnar, grunhir, latir e morder os pacatos e dedicados senhorezinhos vestidos de amarelo da nossa gloriosa e imponente companhia de correios e telégrafos. provavelmente por causa da época em que nasci, nunca soube exatamente o que é um telegrafo. talvez, diria minha mãe, se tivesse pesquisado um pouco, saberia o que é um telegrafo. minha mãe nunca compreendeu o quanto era trabalhoso latir, grunhir e rosnar. isso pra não falar do tempo que perdia comendo.

o senhor doutor com uma enorme caneta e sua pilha de conhecimentos sobre o corpo e a mente e a neurofisiologia disse: "esse está louco!" e não dizia só por dizer, dizia com um garboso embasamento vindo daquelas caixinhas recheadas de letrinhas que os seres humanos cultos devoram para se tornarem mais cultos e, sobretudo, para terem embasamento na hora de dizer: "esse está louco!".

tudo o que aconteceu, aconteceu por causa de um bolinho de arroz. nem preciso entrar em detalhes sobre isso, um bolinho de arroz fala por si só. o interno careca, também louco, como todos os outros, enfiou sua mão peluda em meu prato e subtraiu um desses maravilhosos produtos da culinária moderna de minha modesta pilha. um grande filho da puta, eu diria, mas no hospício não se deve falar palavrão, não é de bom tom. então rosnei, grunhi e arranquei pedaços de sua pele com fortes mordidas aplicadas sem piedade. o filho da puta (só pensei, não falei) precisava de uma boa lição. quando terminei, mijei sobre seus pés e subi em cima da mesa sentindo uma imensa vontade de grunhir, latir e uivar. os outros internos sentiram também essa vontade e grunhimos, latimos e uivamos por horas e horas. a matilha estava formada e eu era o líder.

os bons homens enfermeiros truculentos amarram dois ou três loucos, mas a matilha era grande e estava motivada, era uma luta perdida e não demorou muito para que eles também começassem a latir, grunhir e uivar. submeteram-se, então, ao seu novo líder. partimos, grunhindo, latindo e uivando, para a ala feminina a procura de boas fêmeas no cio. lá elas também latiam, grunhiam e uivavam e perpetuamos, por várias e várias vezes, a espécie, como manda a nossa poderosa mãe natureza. enquanto procriávamos, na porta do hospício policiais com habilidades circenses que sabiam mais do que qualquer um do nós latir, grunhir e uivar, aguardavam a ordem para entrar e tomar nosso território. Porém, num momento de vasta sabedoria, o arrumado senhor secretário de segurança, sem o embasamento das caixinhas do senhor doutor, mas com ainda mais autoridade, disse: "esses estão loucos, não servem pra nada" e ordenou, com sua autoridade garantida pelos poderes das instituições políticas de nossa república democrática, que o hospício fosse trancado, para decepção dos ladrosos policiais circenses. Então lá ficamos e vivemos, desde a gênese ao apocalipse, latindo, rosnando, grunhindo e uivando.

foi nesse meio tempo que percebi: o tratamento surtira efeito. finalmente eu estava curado.

um cão, quando enlouquece, veste uma confortável roupa casual, pega um ônibus às seis da manhã e vai trabalhar.