segunda-feira, 8 de junho de 2009

Dona Célia

Quando me dei conta, já ouvia sua voz no outro lado da linha. Chorosa, num tom de quem já se preparava para dar a notícia a mais um membro da infinita lista de pessoas que ela talvez tenha se esquecido de avisar. Tendo a certeza de que meu número ainda estava na agenda, senti minhas faces esquentarem e percebi que não teria mais volta, seria de muito mal-gosto simplesmente desligar:

- Bom dia Dona Célia. Peço desculpas, liguei para o número errado. - Tudo que ouvi, antes de bater o fone no gancho, foi um soluçogemido e o início de uma crise de choro que se alongaria por muitos minutos. Às vezes me esqueço que ele está morto.

Triste. Mantém o celular do filho sempre ligado, atende logo no primeiro toque qualquer chamada recebida. De uns tempos pra cá adquiriu o perturbador hábito de ligar, a partir desse, para seu próprio telefone, só para ver o nome que ela mesmo escolheu, há 25 anos atrás, aparecendo no visor. Atende sorrindo e desliga logo em seguida, deprimida e envergonhada. Tem repetido o ato a cada 15 minutos. Triste e desesperador.

Muito tempo atrás, já no fim de minha infância, chegando da escola encontrei uma cadela atropelada, caída à margem da rua. Quase não tinha forças para gemer e respirava com muita dificuldade. Uma das patas estava virada pro lado contrário e suas tripas escorriam pela guia.

Entrei chorando pra dentro de casa, abri a gaveta do armário da cozinha e escolhi cuidadosamente a faca mais afiada de lá. Lavei minhas mãos, rezei um pai-nosso e saí. De joelhos, cortei meticulosamente a garganta do animal. Coberto de sangue e deitado ao seu lado, sentia-me um pouco mais homem. Fiz só o que tinha de ser feito. Triste é saber que não posso fazer o mesmo por Dona Célia.

6 comentários:

  1. Sono, muito sono... melhoro isso amanhã, se me der vontade.

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  2. A idéia é muito boa, rapaz. Parece até uma maturação de seus temas. Gostei mesmo.

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  3. Muito bom!!! Mas parece que a volta à infância ficou meio desamarrada... sei lá... Que criança cortaria o pescoço de um cachorro, e já crescido hesitaria em fazê-lo com a Dona Célia??? Acho que tem que ter um bom motivo para não fazê-lo com a Dona Célia (e não seria a lei dos homens a impedir, nem a distância, até pq o moleque foi até em casa, pegou a faca e voltou...). Enfim, um parágrafo a mais ou algumas conexões (semânticas?) internas dentre os parágrafos já existentes poderiam melhorar a coerência, a meu ver... a MEU ver... huahauahuaauhau... Enfim, que importa o meu ver??!!!

    Cabuloso!!!!!

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  4. eu não deveria, mas concordo com você, hehehhe... a volta a infância parece que se separa, de alguma forma, do resto do conto. pronto, já tenho o que fazer pelo resto da noite...

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  5. Sou obrigado a concordar também com o PP (é impróprio citar os "nomes"?). O começo é impecável, mas parece perder um pouco a mão na volta à infância. Ao contrário dele, não consigo sugerir nada. Deve estar dentro desta pichorra que sustenta sobre os ombros - o que só dificulta a busca dado os grandes espaços entre os espasmos e os neurônios (seria isso um latifúndio?)

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