Quando me dei conta, já ouvia sua voz no outro lado da linha. Chorosa, num tom de quem já se preparava para dar a notícia a mais um membro da infinita lista de pessoas que ela talvez tenha se esquecido de avisar. Tendo a certeza de que meu número ainda estava na agenda, senti minhas faces esquentarem e percebi que não teria mais volta, seria de muito mal-gosto simplesmente desligar:
- Bom dia Dona Célia. Peço desculpas, liguei para o número errado. - Tudo que ouvi, antes de bater o fone no gancho, foi um soluçogemido e o início de uma crise de choro que se alongaria por muitos minutos. Às vezes me esqueço que ele está morto.
Triste. Mantém o celular do filho sempre ligado, atende logo no primeiro toque qualquer chamada recebida. De uns tempos pra cá adquiriu o perturbador hábito de ligar, a partir desse, para seu próprio telefone, só para ver o nome que ela mesmo escolheu, há 25 anos atrás, aparecendo no visor. Atende sorrindo e desliga logo em seguida, deprimida e envergonhada. Tem repetido o ato a cada 15 minutos. Triste e desesperador.
Muito tempo atrás, já no fim de minha infância, chegando da escola encontrei uma cadela atropelada, caída à margem da rua. Quase não tinha forças para gemer e respirava com muita dificuldade. Uma das patas estava virada pro lado contrário e suas tripas escorriam pela guia.
Entrei chorando pra dentro de casa, abri a gaveta do armário da cozinha e escolhi cuidadosamente a faca mais afiada de lá. Lavei minhas mãos, rezei um pai-nosso e saí. De joelhos, cortei meticulosamente a garganta do animal. Coberto de sangue e deitado ao seu lado, sentia-me um pouco mais homem. Fiz só o que tinha de ser feito. Triste é saber que não posso fazer o mesmo por Dona Célia.